Conta-me como foi o 25 de Abril

O dia 25 de abril é desde sempre lembrado pelos cravos, a Grândola Vila Morena entoada entre cânticos e o lembrar da liberdade que hoje temos como garantida. Esta data marca o fim do Estado Novo, uma ditadura militar à data governada por Marcelo Caetano e marcada pelo descontentamento da população, a repressão com a presença da censura e de presos políticos. Num dia tão reconhecido nacionalmente, será que sabemos o impacto que este trouxe e as dificuldades atravessadas nesse dia ? 

A  FRONTAL teve o prazer de conversar com o Senhor Francisco Coelho Ferreira, que através da sua simpatia nos permitiu assistir à revolução através dos relatos de quem esteve presente nesse dia. O senhor Francisco reside desde sempre no concelho do Cartaxo, distrito de Santarém e gosta de recordar e contar aos mais novos as memórias que tem da Revolução dos Cravos. Francisco Ferreira está, atualmente, reformado, mas no seu tempo de serviço militar, com 20 anos, participou diretamente, fazendo parte do grupo de soldados que foi a Lisboa derrubar o governo, no dia 25 de abril de 1974, juntamente com o capitão Salgueiro Maia. 

Nos últimos anos do Estado Novo mantinham-se as difíceis condições de vida para a maioria dos Portugueses. Os anos de 1968-1969 foram marcados por manifestações estudantis (sobretudo nas universidades de Lisboa e Coimbra) e por contestação social. Muitos emigraram para o centro da Europa. Outros partiram para Angola e Moçambique em busca de trabalho. Entre os militares era também grande o descontentamento e o cansaço da Guerra Colonial. Nesta altura apenas escolaridade de forma gratuita  como se vivia em Portugal antes do 25 de abril? As pessoas estavam cansadas do quê mais concretamente?

“Em termos de emprego, não estava mal. Formaram-se umas indústrias no concelho onde moro. As atividades lúdicas eram muito poucas. Discotecas não havia. Havia os bailaricos, mas havia horas para acabar e era tudo muito vigiado. Existia a PIDE , uma polícia política, traduzido é: Polícia Internacional de Defesa do Estado e depois, mais tarde, foi substituída pela DGS, que era Direção Geral de Segurança. E depois era a vida familiar. Na minha terra, zona rural, quase todos trabalhavam no campo. Os serões eram passados em casa ou na taberna.”

“As pessoas estavam cansadas daquele governo por diversos motivos, entre eles era a guerra colonial. Todos os rapazes aos 18 anos tinham de se inscrever para fazer a inspeção aos 20, com um médico e etc… E aí sabíamos que o nosso destino era a guerra colonial. Os rapazes mais ricos iam para fora do país, porque tinham dinheiro, estudos e fugiam para o estrangeiro. Só quem tinha dinheiro conseguia terminar a escola…”

Em agosto de 1973 foi criado o Movimento dos Capitães. Este tornou-se o Movimento das Forças Armadas (MFA), em março de 1974, após uma reunião em Cascais. Aí ficou decidido derrubar o Estado Novo, pondo fim ao conflito e instaurando a democracia. Contudo estamos a falar de começar uma revolução que vai contra todo o regime ditatorial até à altura imposto. Como se organizou a revolução sem se dar nas vistas?

“Começou a haver na sociedade portuguesa uma revolta surda. Ouviam-se diversas conversas de polícias, que nós desconfiávamos. Os próprios oficiais que iam para o Ultramar, começaram a criar condições para as pessoas não irem para o mato (em África). O governo fez um decreto de lei que obrigava que os rapazes fossem oficiais, mas não fossem da Academia, fizessem uma comissão para o Ultramar, para, em vez  de saírem da tropa, fossem mandados para uma escola para se formarem em Mafra (na Escola Superior do Exército). Vinham como alféres que era o 1º posto dos oficiais, e depois de serem formados eram novamente enviados para a guerra. Começaram a fazer reuniões por estarem descontentes.”

Qual era a sua posição militar na altura e o que sentiu ao participar naquela Revolução?

“Eu nessa altura era aprendiz…Era recruta. Ainda era aprendiz de militar. Estava há 3 meses na tropa!  Naquela altura senti que estava a participar numa coisa  muito importante, numa coisa boa para o nosso futuro.  Houve, de facto, melhorias. E o que mais recordo nesta revolução é a amizade que se criou entre os soldados entre as diferentes patentes…”

Às primeiras horas do dia 25 de abril, as forças da MFA convergiram sobre Lisboa e as principais cidades do país. No entanto, teve de haver uma grande coordenação e sobretudo comunicação para se perceber o que estava a acontecer. Havia duas músicas que serviram de código, o que é que cada uma significava?

Havia duas músicas que serviram de código:  a de Paulo Carvalho  “E depois do adeus”. Essa foi para o pessoal se começar a preparar: Os aparelhos, as máquinas. Estava tudo preparado! E depois foi “Grândola. Vila Morena” (de Zeca Afonso)– essa foi o código para avançarmos. Estávamos só à espera disso. Nessa altura eu tinha entrado no quartel à meia noite. Vim a casa. (Uma vez por semana vinha a casa). Estava-me a preparar para deitar e a rapaziada estava com o radiozito ao ouvido na cama: “Epa, olha a música: A Vila Morena! Essa música está proibida!”. Estávamos espantados. Entretanto fomos mandados levantar para formar, buscar espingardas, as balas e tudo. E tudo a andar!”

E como foi a revolução? Conseguia descrever o dia?

“Foi um dia muito complicado! O senhor Salgueiro Maia reuniu-nos no anfiteatro (onde tínhamos aulas) e já tinham prendido o comandante da escola e o segundo comandante também. Já tinham substituído os comandantes. Portanto a máquina já estava preparada! Leram-nos uma ordem de serviço a informar o que já que tinha sido tomado, mas quando chegamos a Lisboa ainda nada tinha sido apanhado. Aquilo atrasou-se. Nós fomos para a Praça do Comércio prender os ministros. O pessoal fez o cerco no Terreiro do Paço. Apareceram lá soldados de outra patente que começaram a bater-nos palmas e a dizer adeus. Nós pensávamos que estavam do nosso lado, mas afinal eles pensavam que os íamos ajudar! Houve situações muito complicadas. Do ministério da marinha saiu uma carrinha a alta velocidade cheia de oficiais que estavam a fugir.

No Terreiro do Paço, a coisa complica-se… Os carros de combate que tínhamos mandado vir de barco por serem muito pesados caem nas mãos erradas. Era um oficial que estava contra a revolução que estava a comandá-los! Quando vimos os canhões apontados para nós e nós com uma G3, pensámos em fugir. Já tínhamos os carros todos virados para Santarém. Mas o nosso capitão Salgueiro Maia, que era um homem corajoso e decidido, estava sempre disposto para tudo! O que é que ele faz? Entrega as armas ao adjunto, mete uma granada no bolso e vai dialogar com o comandante. Salgueiro Maia deu ordem de prisão ao comandante, este dá ordem para dar um tiro a Salgueiro Maia ao seu alferes, mas o alferes recusa-se. O comandante ficou preso. A partir daí ficamos em segurança.

Um navio da marinha foi-se pôr no Tejo em frente ao Terreiro do Paço com as peças apontadas para nós. Aquilo era para deitar o Terreiro do Paço abaixo. Mas entretanto os nossos canhões, que já se tinham passado para o nosso lado, apontaram as peças ao barco. O barco acabou por ceder, porque tinha havido um motim lá dentro e o comandante tinha sido destituído! Mais tarde veio-se a saber que o comandante da fragata era o pai do Dr. Francisco Louçã.

Apareceu outra fragata, mas como não tinha número da marinha portuguesa, percebemos que estava ali por engano. Mais tarde viemos a saber que era uma fragata inglesa que estava a prestar serviços da NATO nos Açores que tinha avariado e veio a Lisboa para ser reparada. Mas como perceberam que havia ali uma revolta, deram a volta e seguiram viagem.”

“Podia ter sido uma revolução violenta. Houve uma altura em que se podia ter tornado violento. O senhor Salgueiro Maia levava ordens para tomar o Quartel do Carmo e prender o Dr. Marcelo Caetano, que estava lá, mas não para tomar pela força. Era para ir buscar o Dr Marcelo Caetano. Claro que não queriam entregar assim sem mais nem menos…”

Coube ao capitão Salgueiro Maia, vindo de Santarém, ocupar os ministérios e levar à rendição de Marcelo Caetano, que estava à frente do Governo e que se refugiara no Quartel do Carmo. Como era o capitão Salgueiro Maia?

“Era um militarão, levava tudo a sério, mas era um irmão que nós tínhamos, porque não havia hipóteses nenhumas de nós falharmos com ele. Bastava vermos o homem, ouvi-lo falar para nós, e nós víamos logo que era um militar a sério! “

Os militares tiveram um papel muito importante nesta revolução. Qual o papel do Senhor Francisco na Revolução?

“Um papel simples. Um papel quase de número, como todos na minha situação fomos fazer, mas com muita responsabilidade. Porque a principal força da Escola Prática de Santarém, foi tudo  – o Esquadrão pertencia aos Carros de Combate, o chamado Esquadrão do Reconhecimento. Tudo o que metesse carros de combate era chamado de Reconhecimento. E depois esse Reconhecimento, esses carros de combate tinham de ter uma outra força. (…)

É assim, o cerne da questão está aqui, que era a questão da Praça do Comércio.  As nossas forças principais estão aqui concentradas (no centro) e depois tem que ter uma outra força à volta para não deixar haver passagens para o meio, fazer a segurança à volta, fazer um cerco. Era o grupo a que eu pertencia. Fazer número, fazer número, mas com cabecinha, saber o que estávamos a fazer. Estávamos a fazer uma segurança a nós próprios, à nossa força própria. Ao todo éramos 240 homens – a força de Santarém.”

A população saiu à rua e apoiou os militares, distribuindo cravos, a flor que ficou associada a este dia. Por que razão se tornou o cravo o símbolo do 25 de abril?

“Não sabemos. Foi um acaso. Sabes, nestas situações, primeiramente fecha-se logo os aeroportos. Os portos marítimos também. As estações de comboios são fechadas. Tudo isso, se puderem fechar, é tudo fechado. Transmissões. A rádio portuguesa foi ocupada por forças do nosso lado. A emissora nacional também. Radio Clube Português  também, que era das emissoras que tinha mais força na época. Rádio Renascença – tudo isso foi ocupado. O aeroporto foi fechado. Visto que nesse dia havia um embarque com cravos portugueses para um país qualquer da Europa. Não foi ninguém. Os aviões não saíram, os cravos não saíram. As flores, que eram para ficar, foram distribuídas pelas vendedeiras e pelas casas da especialidade. Como se  fechou tudo, não se vendia nada. As bancas das ruas não vendiam nada. E além de não vender, começou-se a estragar. Então, o que é começaram as senhoras a fazer? Começaram a distribuir os cravos por nós. Começavam a dar-nos os cravos… há aquela fotografia de uma criança a meter um cravo num cano de espingarda. Essa fotografia foi tirada mesmo de propósito para ser assim. Esse rapaz vive na Inglaterra.“

Como é que as pessoas mais afastadas do centro da Revolução se aperceberam da mesma?

“Posso dizer que quando regressamos, estava toda a gente na rua, na estrada principal. Por exemplo, eu posso-vos dizer que os meus pais andavam a trabalhar numa vinha que tínhamos. Eles saíram de manhã, não se aperceberam de nada – e o vizinho chegou lá e disse: “É pá! Aquilo em Lisboa houve lá uma guerra! Houve lá uma revolução. Mataram o Marcelo Caetano”. A minha mãe disse logo (eu estava na tropa em Santarém): “Então e agora, o rapaz também foi?” E responderam: “Então, alguma vez o rapaz foi para a guerra! Então ainda é um maçarico (aprendiz)! Alguma vez o levavam para a guerra!” 

“Outros deram por isso quando chegaram a casa, à noite. Começaram a ouvir e a ver notícias. E pronto, só assim é que deram com a situação. E depois alguns logo de manhã começaram a ouvir notícias ou a ouvir rádio no próprio dia, já não foram para o trabalho.

Por exemplo, em Lisboa não deixaram entrar ninguém para ir trabalhar. Ficou tudo rodeado. Ficou tudo cancelado nas entradas. E aqui foi o mesmo.  E depois passaram-se oito dias sem trabalhar, a organizar as coisas.”

Depois do 25 de abril – Quais foram as principais mudanças?

“Pois aí é que a porca torce o rabo, como se costuma dizer…é que depois todos querem a brasa para a sua sardinha! Se houver 10 brasas e aparecerem 20 sardinhas – pois como é que é? É uma metáfora. E aconteceu. Apareceram os partidos – foi logo a primeira coisa. Depois toda a gente queria ir para o governo. Toda a gente queria formar governo. Pois esse Senhor Spinola pôs isto tudo em pé de guerra. Foi nomeado Presidente da República. Quando foi o mês de Setembro, pediu demissão. Não se entendia com ninguém, ninguém se entendia com ele. Depois houve uma tentativa de viragem no dia 28 de setembro. Todos os dias havia reuniões, todos os dias havia notícias novas. Foi importante a descolonização, que foi feita à pressa. Vieram os retornados para Portugal. A PIDE não deixou de existir totalmente. Os presos políticos foram libertados. Para os mais velhos, houve consequências boas, como uma vida mais limpa, não eram tão explorados no trabalho. Depois veio a reforma para os agricultores – todos ficaram contentes com estas mudanças.”

Esta entrevista permite-nos refletir mais sobre a nossa história enquanto portugueses e valorizar a evolução que existiu para chegarmos até aos dias de hoje. É um testemunho em discurso direto de um ex-militar que esteve na linha da frente a lutar pelo futuro do seu país. O Senhor Francisco testemunhou momentos de grande incerteza, sem saber o desfecho que a Revolução teria, apenas acreditando que estava a fazer os possíveis para melhorar a situação em que o país vivia. Por fim, o Senhor Francisco deixa uma mensagem para as próximas gerações, relembrando a dificuldade que era na época estar na escola: “O que nós fazíamos antigamente, os jovens da agora também o fazem… Divirtam-se e façam as brincadeiras que têm a fazer. Simplesmente não se esqueçam que o que fazem hoje só mais tarde é que têm os resultados. Se fizerem bem, têm uma boa vida. Aquilo que fizerem agora vai-se refletir no vosso futuro. É importante estudarem! Antigamente tínhamos que pagar para estudar!”


Comentários

Um comentário a “Conta-me como foi o 25 de Abril”

  1. Avatar de Manuela Marques
    Manuela Marques

    Ficou muito interessante! Parabéns ! Temos que honrar os nossos heróis que fizeram História, antes que desapareçam

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