Há sempre razões a favor de uma visita à Galeria Zé dos Bois. Seja a meio de uma tarde de verão para uma conversa calma na varanda, ou um copo mais agitado no terraço nas noites de final de semana, ou, como foi o caso desta quarta-feira, para ir a um concerto. E ir a um concerto nesta sala emblemática do Bairro Alto é certamente distinto. O espaço é apertado e isso seguramente ajuda a construir a comunidade espontânea que ali se junta nas noites de atuações. Entre vários outros atrativos, um deles é sem dúvida o modelo de concertos que a ZDB adotou faz já uns anos.
Para a primeira hora do concerto é convidado um artista, normalmente português, que se alinha com o estilo do artista principal, que é tipicamente a razão pela qual as pessoas se deslocam até à Rua da Barroca. Tenho a dizer que, nestes últimos anos, a curadoria feita pelo pessoal da ZDB na seleção destes artistas que abrem os concertos tem sido excecional. Conheci vários artistas que agora sigo regularmente através desta primeira parte dos concertos. É de louvar o trabalho que a ZDB faz em divulgar músicos do meio alternativo, aproveitando uma atração maior, como o nome principal, para nos introduzir a pequenos nomes nacionais que definitivamente merecem mais atenção.
Neste formato, o artista convidado para abrir o concerto de Hayden Pedigo foi P.S. Lucas. Antes de começar a tocar o que quer que fosse, apresentou-se à sala, falando durante uns minutos. Assim teria de ser, pois o artista dos Açores avisou que, mal começasse a tocar, não pararia até chegar ao fim da atuação. Foi algo que efetivamente cumpriu. O alinhamento de várias canções transformou-se numa sinfonia fluída com vários andamentos, correspondentes às diferentes canções, sendo difícil indicar o ponto exato de transição entre elas.

O cantor mencionou estar ainda a curar uma gripe, “que começou em agosto”, acrescentou com o humor reservado com que foi ocasionalmente pincelando a sua hora de espetáculo. Talvez por este resfriado fosse difícil entender a sua dicção a maior parte do tempo. A quase totalidade das músicas eram cantadas em inglês, oscilando entre versos bastante específicos e outros logo de seguida mais abstratos. Havia um sentido poético adjacente às letras que era evidente. No entanto, alguns destes versos eram mais poéticos do que originais.
As letras raramente convenceram, mas a parte instrumental manteve-nos sempre atentos. P.S. Lucas pertence àquele grupo de artistas que tocam a cinco ou seis vozes quando estão sozinhos em palco, de forma a conseguir passar o trabalho de estúdio, feito por sobreposição de faixas, para uma atuação ao vivo a solo. Munido de uma guitarra e um pedal, o artista foi tecendo redes complexas, com loops e efeitos. É algo que se vê com frequência neste género de mistura do folk com a eletrónica, mas que nunca deixa de nos surpreender.

Embora de forma diferente, Hayden Pedigo também recheou o espaço com pouco mais do que uma guitarra e dez dedos. Depois de ter saído para o exterior durante o pequeno intervalo, ao voltar à sala foi difícil posicionar-me na linha da frente, onde anteriormente estava. Uma vantagem de ter ficado mais atrás é que me permitiu ter uma noção do público que enchia a sala.
Seguir artistas menos conhecidos pelo público geral significa conhecer poucas pessoas que ouvem aquele artista para além de nós e, quando o artista passa pela capital, é uma oportunidade perfeita para satisfazer a nossa curiosidade sobre quem são os outros fãs na nossa cidade. Qual a faixa etária predominante? Como se parecem? Será que vamos encontrar conhecidos na plateia? Há um tipo específico de pessoas que é mais atraído por folk instrumental em Lisboa?
A demografia daquela noite era bastante variada. Não havia uma maioria nem nenhum padrão. Sondando a sala com os olhos, víamos miúdos e graúdos, quer fosse em grupo com amigos, a solo, em família ou em casal. Enquanto certos géneros e artistas têm uma base de fãs mais homogénea, Hayden Pedigo pareceu ser capaz de agradar qualquer pessoa e ser um bom plano de quarta à noite para diversos cenários. E, como sempre na ZDB, encontrámos conhecidos que não estávamos à espera de ver.

Esta mesma plateia foi bastante envolvida por Pedigo a meio do seu concerto, numa secção dedicada a perguntas. Os fãs levantavam o braço, o artista dava-lhes a palavra e seguidamente Pedigo respondia à questão. Este foi o expoente de uma característica do guitarrista que nos chamou a atenção. Houve muita conversa neste concerto. Hayden Pedigo gosta de falar. E fala bem e deixou-nos várias vezes a rir. Ao mesmo tempo, logo no início do concerto o artista fez uma ressalva sobre o silêncio nas suas composições, dizendo que a meio das suas peças existiam muitas pausas prolongadas que davam a entender que a música já tinha acabado, mas que essa ausência de som era, na realidade, parte da música.
Mais à frente, tocou o tema do magnífico filme Brokeback Mountain, do qual Pedigo gostava especialmente pelos seus silêncios excruciantes. Durante o concerto, o texano disse algo muito interessante também. Nós habitualmente estamos desconfortáveis com o silêncio e as únicas ocasiões em que conseguimos estar em grupo sem dizer nada e sem nos desatarmos a rir é quando algo mau acontece. Mas, para Pedigo, não devia ser assim. Nós devíamos conseguir estar em silêncio quando algo bom acontece. “Como este concerto”, ele adicionou.

Hayden Pedigo na ZDB, por Beatriz Pequeno
Ouvindo nos auriculares a música de Hayden Pedigo é-nos nítido que há um grande controlo sobre quando e como é emitido som. As composições aceleram para depois se seguir um rallentando e logo após tal um longo silêncio. Há crescendos e diminuendos, há alterações de andamento, há ecos que aparecem e desaparecem. E há silêncio. Muito silêncio. Se ainda não era óbvio nas gravações, naquela noite na ZDB o comando e a intencionalidade de Pedigo tornou-se clara.
Não só a música progride como ele quer, como também qualquer alteração e qualquer escolha estilística têm um significado. O silêncio não é só a inexistência de música. O silêncio é música também e fala tão ou mais alto que os acordes dedilhados escutados nos outros momentos. Há quem tenha dificuldades em entender a música instrumental por não ter letras que dêem significado às canções. Mas a música deste artista está carregada de significado. Há propósito em cada onda de som das suas criações.
Hayden Pedigo não é um maníaco do silêncio, como se viu pelas longas conversas que teve com o público tanto durante como antes e após o concerto. Mas, para ele, um silêncio não é algo desconfortável e tem tanto objetivo como uma palavra ou um acorde. Esta noite na ZDB, a meio da semana de trabalho (que para muitos é sinónimo de correria contra o tempo), foi algo invulgar, por vezes desconfortável pelo confronto com o silêncio, mas certamente importante e necessário. Foi preciso vir um rapaz de uma aldeola no Texas para nós, talvez pela primeira vez na semana, convivermos com o silêncio e reconhecermos o seu peso e intencionalidade.


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