Esta mudança de estação imprevisível deixa-nos todos os dias indecisos de manhã e arrependidos a meio do dia. Num destes dias demasiado frequentes que passam por quatro estações em duas horas, fomos até à Galeria Zé dos Bois e saímos de lá com algumas certezas sólidas. A história de mark william lewis é recente, mas certamente contará com muitos anos e um lugar bem cimentado nesta segunda metade da década.
Na música, existe o constante debate acerca da música a solo versus a feita em coletivo e qual consegue melhores resultados. Em géneros como o rock e adjacentes, que desde a sua génese assentam muito na ideia de comunidade, tende-se a concordar que várias mentes a trabalhar para um objetivo comum chegam mais longe do que uma pessoa isolada. Já na pop, na eletrónica e até mesmo na folk, o conceito de “banda” é menos frequente.

A democratização do acesso a material de gravação nos últimos anos levou a que mais artistas conseguissem partilhar as próprias criações diretamente do seu quarto para o mundo, sem precisarem de se ligar a outros artistas. Os artistas solo dentro do rock têm sido cada vez mais frequentes. Ainda assim, grupos recentes como os Black Country, New Road, Fontaines DC e Wednesday (mesmo que MJ Lenderman tenha iniciado uma promissora carreira a solo) são testemunho de que há muito futuro na coletividade e a morte das bandas não está para breve. De certa forma, mark william lewis (um artista rock a solo bastante recente) provou que a música, quando feita em conjunto, pode fazer coisas que o indivíduo sozinho em palco não consegue.
É importante também distinguir que uma coisa é o material gravado e outra, a performance. Especificamente dentro do rock, é comum haver uma banda por detrás de um projeto pessoal a solo, acabando o resultado final por ser fruto de um esforço conjunto. Acredito que seja o caso de mark william lewis. É ainda mais frequente que os projetos a solo se apresentem nas digressões com bandas de quatro ou cinco elementos; caso contrário, não seria possível reproduzir a música que gravaram. Foi o caso de mark william lewis.
Um dos artistas da sua banda, Ashley Plomer, abriu o concerto. Sozinho em palco com apenas uma guitarra, apareceu bastante distante do público. Pouco ou nada interagiu com o resto da sala e o alinhamento foi-se assemelhando a uma checklist, com o artista a dizer, curtamente, nos silêncios: “Faltam duas canções”, “Falta uma canção”. Os momentos em que Plomer tinha maior presença eram quando se desinibia, abria bem a boca, estendia o pescoço e cantava vigorosamente as notas mais agudas.

É difícil para qualquer pessoa atuar completamente sozinha em palco, mesmo para os artistas que, de forma natural ou por experiência, têm mais presença. Por essa razão, não julgamos de forma nenhuma Ashley Plomer. Por ser parte da banda de mark william lewis, revêmo-lo na segunda parte, com uma postura completamente diferente. Estar acompanhado de outras três pessoas deu-lhe naturalmente mais confiança. Pelo que vimos de mark william lewis, deduzimos que, se este fosse deixado sozinho em palco, também não teria tanta projeção. Mas aqui o fator “banda” fez a completa diferença. O artista raramente se dirigiu ao público e mesmo assim não se sentia a distância, que era clara no ato de abertura.
Ao contrário daquilo que seria intuitivo, a maioria dos artistas são pessoas tímidas e alguns até têm pavor de subir a palco. O mais provável é que Ashley Plomer e mark william lewis sejam ambos introvertidos, tendo conseguido superar esta limitação com o incentivo constante das outras três pessoas que estavam em palco. A comparação das duas atuações da noite vai além da afirmação óbvia de que quatro pessoas a tocar instrumentos diferentes fazem música mais complexa do que só uma pessoa (o que por si só já é um ponto a favor do argumento de que bandas têm um maior leque de atuação do que artistas a solo). A comparação mais interessante prende-se com o feedback positivo que vai sendo gerado quando se toca em banda.
Foi bonito ver como, muitas vezes, os quatro artistas formavam um círculo fechado, mesmo virando as costas ao público, e estavam focados em construir algo em conjunto naquele momento com os instrumentos que tinham em mãos. Olhavam-se nos olhos, por vezes encostavam as testas uma à outra e puxavam uns pelos outros. Quem já fez música em conjunto e quem já fez parte de performances em público com outras pessoas sabe que há uma “energia” que é específica destas situações e que nos torna capazes de fazer algo que sozinhos não conseguiríamos. E faz diferença. É palpável quando esta “energia” está lá e quando não está. Há quem lhe chame de “química” também, mas o que interessa é que havia uma coesão e entendimento mútuo na banda que vimos tocar que tornou o resultado final muito maior do que a soma das partes. Foi deveras monumental.

A segunda atuação surpreendeu-nos, mas não apenas pela sua excelência. Este novo álbum de mark william lewis parece-me não só ficar melhor cada vez que o revisito, como soar a algo diferente da audição anterior. O concerto na ZDB não foi exceção e, na realidade, ao vivo ainda foi mais distinto. A banda manteve-nos agarrados durante mais de uma hora de concerto, simultaneamente surpreendidos com o que acabávamos de ouvir e curiosos para o que se seguiria.
O álbum homónimo já é merecedor de todo o destaque, mas a versão ao vivo das canções acabou por suplantar aquela que ouvimos nos headphones no meio do caos dos transportes públicos. Ganhavam nova vida e não eram apenas uma reprodução do material gravado. Eram um objeto artístico por si só, independente do registo de estúdio. E isto é uma das características dos melhores artistas ao vivo. A atuação vale por si e é uma experiência cujo valor artístico não está circunscrito ao valor artístico do material de base. Criam em tempo real, à frente dos nossos olhos e com o próprio corpo, algo grandioso e que nos abala, no melhor dos sentidos.

Há concertos que valem pelas canções em si, outros pela sala, outros porque o género do artista nos diz alguma coisa, outros apenas pela companhia e muitas outras justificações. Há ainda aqueles que valem pela arte da performance, pela mestria com que enchem aquela hora de espetáculo. O concerto de mark william lewis na ZDB vale por muitas das razões supramencionadas, mas, a eleger só uma, seria certamente o espetáculo exímio que ele e a sua banda constroem. A sua carreira é recente mas não nos espantava se, daqui a cinco anos, lewis fosse um respeitado cult favourite. Para os que perderam a oportunidade de o ver este ano, não desanimem, porque em junho de 2025 o artista volta a terras lusas para o Primavera Sound do Porto.


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