PENSAR LIVRE: Quando é que profissionais de saúde deixaram de ser a linha da frente?

As visões expressas neste artigo refletem única e exclusivamente as visões do autor do mesmo, não refletindo necessariamente a visão ou linha editorial da FRONTAL.

Em maio de 2024, a Nova Medical School em Lisboa, uma faculdade de medicina, entrou, finalmente, para a história do movimento estudantil, ao sentar diretamente 5 estudantes no banco de réus no tribunal devido a uma manifestação [1], pela primeira vez desde o Estado Novo, detendo e agredindo a nossa próxima geração de médicos.

Geração que ficou cansada do silêncio das nossas instituições e governos perante as 40 mil mortes até agora em Gaza e nas biliões de vidas em risco, indiferentes a qualquer bata branca, nos 2 graus de aquecimento para que caminhamos. Porque representar, verdadeiramente, um juramento foi o que fizemos quando protestámos por um cessar-fogo imediato em Gaza e o fim dos combustíveis fósseis até 2030 em Portugal.

A uma geração que nasce, vive em emergência climática e é condenada a um planeta em estado paliativo, mas obrigada a ser os agentes mais confrontativos do status quo e a desafiar as estruturas de poder, soa no mínimo hipócrita, o que para outros é considerado um recuar de 50 anos, ser acusado de “Introdução em local vedado ao Público”. E se já tínhamos as mãos cheias com o nosso papel revolucionário, ficamos cara-a-cara com um problema ainda maior, infelizmente, já visto por todos. Quando é que profissionais de saúde deixaram de ser a linha da frente?

Saúde, uma das necessidades fundamentais do ser humano, revela a interdependência do indivíduo com o sistema em que este se insere. No sistema capitalista, a ausência de saúde e a falta de acesso equitativo aos cuidados de saúde é exacerbada por dinâmicas estruturais como a mercantilização deste direito e a desigualdade económica, onde o lucro prevalece sobre a própria vida humana, criando vulnerabilidades em massa. A crise climática, alimentada por este sistema, causa e intensifica crises de saúde pública. Com um governo a nada fazer pelo nosso Serviço Nacional de Saúde já em ruínas e a trabalhar ativamente pela sua deterioração, questionamo-nos, que urgências estarão abertas num país a arder e devastado pelas cheias? E sabendo nós agora que, crise climática é uma crise de saúde pública, será fácil compreender, que é mais eficaz cortar as emissões de gases de efeito de estufa nos prazos da ciência, do que aprender a tratar infeções tropicais, lidar com doenças cardiorrespiratórias mais frequentes e feridos dos extremos de calor [2], num hospital sem água.

Por outro lado, vemos os profissionais de saúde em Gaza a desempenhar dois papéis na luta da libertação da Palestina. Objetivamente, linha da frente, enquanto, cuidadores das vítimas da violência e da opressão, mesmo em condições sanitárias catastróficas dos campos de refugiados e sujeitos aos bombardeamentos intencionais dos hospitais, muitas vezes, sem recursos médicos básicos e a lidar com surtos e epidemias. Mas, são também estes a voz de denúncia, agindo, exatamente, como a profissão obriga e contornando qualquer obstáculo imposto pela ocupação, como o bloqueio de fornecimento de medicação, cortes de energia e restrições do movimento, ao continuar a cuidar e a manter viva a luta pela dignidade e sobrevivência de um povo que resiste há mais de 70 anos. Toda e qualquer consulta realizada, medicação administrada ou cirurgia feita é, neste momento, um confronto direto ao sistema opressivo, em que o direito à saúde é, também, uma luta política.

Inspiradas pela resistência simbólica e prática dos profissionais de saúde na Palestina, não poderíamos fechar os olhos à inação das nossas instituições em tratar a maior crise humanitária para a qual caminhamos a passos largos, quando não existe nenhum plano para o fim dos combustíveis fósseis até 2030. Confrontamos o sistema quando ocupamos uma escola médica. Lutamos pela vida quando bloqueamos o Ministério da Saúde, colando as nossas próprias mãos às portas de entrada. E agora, estudantes por todo o mundo e também em Portugal, confrontam o sistema com uma “Carta de estudantes pelo Fim ao Fóssil até 2030” exigindo ao seu governo um plano de transição justo. Se a nossa reivindicação for, mais uma vez, silenciada, estudantes sairão das suas aulas para iniciar um período de duas semanas de paralisação das suas escolas na Primavera.

Infelizmente, também sabemos que saúde apenas será um direito humano quando repensarmos as linhas do sistema em que esta está inserida. Então, pessoas de cuidados, não será altura de escalar a nossa luta e relembrarmo-nos do nosso papel como linha da frente: proteger a vida humana?

[1]: https://sicnoticias.pt/pais/2024-11-13-video-adiado-o-julgamento-dos-cinco-estudantes-que-protestaram-por-cessar-fogo-em-gaza-na-universidade-nova-de-lisboa-960aec3e

[2]: https://www.actamedicaportuguesa.com/revista/index.php/amp/article/view/10473/5417


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