Maria BC e Cecília Corujo na ZDB 

Maria BC foi o pretexto, mas ficámos rendidos à atuação de Cecília Corujo e ao resto da editora Lay Down. 

A noite de quarta-feira na Galeria Zé dos Bois foi de agradável surpresa. Foi Maria BC quem nos levou até ao Bairro Alto a meio de uma semana atarefada. Para alguém que acompanhou com entusiasmo o lançamento dos seus dois álbuns, a passagem de BC pela intimista sala da ZDB era um evento a não perder. Mais obrigatório se tornava, atendendo a que teríamos o privilégio de ser público estreante de muitas das canções do novo álbum, o airoso Spike Field, que saíra apenas cinco dias antes.  

Sabia já que iria haver um concerto de abertura, mas não fixei o nome sequer nem investiguei sobre a artista em questão. Chama-se Cecília Corujo e, mesmo que tivesse investigado, a pesquisa teria sido pouco frutuosa. Trata-se de uma artista emergente, sem material lançado ainda e que assinou com a jovem editora de folk lusitano Lay Down, que ficámos a conhecer na mesma noite. Começou a atuação sozinha em palco, acompanhando-se a ela mesma na guitarra acústica. As canções, em inglês, remetiam-nos imediatamente para a Greenwich Village dos anos 60, naquela harmonia de uma só guitarra que enche a sala e a voz despreocupada em polir as emoções. 

As composições de Corujo apresentam estes dois elementos como principais. As letras beneficiariam de retoques, caindo por vezes em clichés e imagens demasiado vagas. No entanto, as histórias que conta, aliadas à entrega vocal, espelham mágoa de forma tão crua e genuína que é impossível ficar indiferente. Não é uma voz perfeita, mas é sem dúvida mais interessante, transpirando humanidade e uma pletora de nuances em todas as inflexões e trejeitos, que parecem sair-lhe naturalmente, mas não por isso menos sentidos.  

Deixou as participações especiais para o fim do alinhamento, dando-nos a conhecer alguns dos colegas de discográfica. Primeiro, trouxe a palco Filipe da Graça para a acompanhar numa guitarra de doze cordas. Ele sentado numa cadeira de madeira e ela em pé, sob os sóbrios holofotes e ligeiramente voltados um para o outro, faziam lembrar algumas das cenas de Inside Llewyn Davis. Os dedilhados das guitarras, agora duas, ocupavam e espalhavam-se pela sala.  

Para a última canção do set, Corujo voltou a contar com Graça, mas chamou ainda Marinho e April Marmara, também da Lay Down. Corujo manteve-se no seu microfone e os restantes três partilharam um segundo, à direita de Corujo. Interpretaram a comovente balada “Orquídea em Flor”, que imediatamente procurámos no Spotify, sem sucesso. A tradição da música folk de Peter, Paul and Mary e Simon and Garfunkel estava bem representada na textura das harmonias, trazendo-nos uma desafogada beleza, esparsa e um tanto condensada ao mesmo tempo, tal balão insuflado de ar, mas de tensão também. As quatro vozes entrelaçavam-se enquanto cantavam sobre vários elementos da natureza como pano de fundo a uma relação humana, naquele que foi o momento mais marcante de toda a atuação de Corujo.  

Cecília Corujo na ZDB, fotografia por Beatriz Pequeno.

Depois de um curto intervalo, vinha a palco Maria BC. Desde logo, era fácil fazer a ligação à herança folk que partilhava com os artistas da Lay Down, mas isso também tornava ainda mais óbvio em que medida BC diverge da mesma. A iluminação já era mais difusa e menos dirigida, materializando a sonoridade shoegaze e o uso de reverb central nos trabalhos de Maria BC. Tal como Corujo, apresentou-se a solo com apenas uma guitarra, agora elétrica. Em contraste, BC não se apoia somente no som limpo da guitarra, tendo por isso, para além dos pedais de reverb, uma caixa de sons, a partir da qual punha as faixas de acompanhamento a tocar.  

Maria BC é um excelente exemplo da modernização da folk, unindo às melodias de Joni Mitchell a produção distorcida do final do milénio ao estilo de Slowdive e My Bloody Valentine. A nébula resultante por vezes torna difícil a compreensão das letras na sua totalidade, mas a solidão que a voz cristalina carrega fala por si só. Quando o trabalho de estúdio é tão estrutural na faixa final que ouvimos, joga-se sempre o jogo das diferenças numa atuação ao vivo, em especial em artistas com uma componente orgânica tão forte como BC. Podemos dizer com confiança que, mesmo contando apenas com a sua presença, a entrega das canções em nada perdeu para a gravação. Até ganhava uma outra dimensão na pequena sala da ZDB, propositadamente mal iluminada, e quando, de tempos em tempos, se fazia espalhar fumo branco pelo palco.  

Apesar do seu caráter tímido, foi difícil não tirar os olhos de BC, que, salvo pontuais interações com o público, canalizava toda a atenção para os instrumentos. A graciosidade da música hipnotizava, mais ainda do que as audições da gravação de estúdio. Tanto assim foi que BC conseguiu várias vezes afinar a guitarra de forma tão elegante que se mesclava discretamente com as canções. É precisamente nisto que BC prima, no equilíbrio entre várias realidades. Junta o folk das décadas de 60 e 70 com o shoegaze e pós-punk dos anos 90. Alia um sentimento de isolamento na voz à guitarra que se propaga livremente, saindo de si mesma. E fá-lo sempre de uma forma controlada, mas genuína, desamarrada e incalculada. 

No final do concerto, comprei o CD de Hyaline, o primeiro álbum de Maria BC e, já em casa, coloquei-o ao lado de Clouds, de Joni Mitchell, e Unknown Pleasures, de Joy Division. Pareceu-me o enquadramento mais correto. Fui também investigar os lançamentos dos artistas da discográfica Lay Down, dos quais destaco ~, o álbum de 2019 de Marinho, e ainda Still Life, álbum de April Marmara, lançado este ano. Espero ainda com grande expectativa os primeiros trabalhos de Cecília Corujo. 

Foi uma noite de homenagem às diferentes formas através das quais a folk ainda vive. Dentro e fora de Portugal, tanto em português como em inglês. A solo ou envolto na malha de harmonias. Mais acústico e puro ou de fusão e bebendo de outras fontes também. Foi uma noite em que se estabeleceu um bonito diálogo com a longa tradição folk, mostrando como num género que assenta na simplicidade pode caber tanta variedade, que a qualidade não vem só pela inovação e até que pode haver muita novidade no uso da tradição. 

Recensão por Pedro Picoito do concerto decorrido a 25 de outubro de 2023, na Galeria Zé dos Bois em Lisboa. Fotografias por Beatriz Pequeno.


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