AMORE e Rebe são duas vozes espanholas bastante promissoras. Tivemos o privilégio de as ver na Musicbox.
Na época do streaming é fácil passar-nos ao lado o trabalho dos promotores e a curadoria por trás da programação das salas de espetáculos. Mas a verdade é que, ao lado da imprensa, ter salas de referência, em cuja proposta cultural nós confiamos, é uma excelente forma de conhecer novos artistas e acompanhar aquilo que se passa no panorama musical. Por essa razão, numa noite amena de final de novembro, fomos à Musicbox ver AMORE e Rebe, duas artistas espanholas emergentes, num concerto incluído no contexto da Mostra Espanha.
A Mostra Espanha é um festival bienal de cultura espanhola que realiza a sua oitava edição em 2024. Conta com um programa de atividades culturais organizadas pela Subdirección General de Relaciones Internacionales y Unión Europea do Ministério da Cultura de Espanha, em colaboração com a Embaixada de Espanha em Portugal e tem o apoio da Acción Cultural Española, do Instituto Cervantes de Lisboa e do Governo Português, através do Ministério da Cultura. O principal objetivo é mostrar o dinamismo e a criatividade das indústrias culturais espanholas na atualidade. O seu propósito final é, no entanto, oferecer experiências de diálogo cultural entre os dois países que permitam a criação de projetos comuns num futuro imediato.
Amore é o nome artístico de María Moreno, nascida em Múrcia em 2000. Formou o projeto independente em 2020, quando se mudou para Madrid à procura de novas oportunidades. Na sua música, junta estilos aparentemente incompatíveis, resultando num indie pop eletrónico e cita como inspiração Fiona Apple, Kate Bush, Dean Blunt e Björk. Apesar de só ter lançado um EP ainda e vários singles, o seu nome está mais estabelecido do que o de Rebe, fechando por isso a noite.

Rebe, artista madrilena nascida em 1997, apresenta-se com uma estética forte e bem definida de boneca, através do imaginário vintage, a presença no Instagram e os seus videoclipes, sempre com muito teatro e contos de fadas à mistura. Apresenta uma personagem tímida, mas sensual e emotiva, delicada e feminina. Este ano lançou o álbum de estreia es que acaso no me oyes??, que é incontornável.
Com meia hora de atraso, Rebe deu início ao concerto, com um espetáculo pomposo de uma hora. Por entre sons gravados de vento e expirações, a cantora entrou em palco de uma forma dramática, de rosto tapado por um véu negro, e mais tarde parando para fitar o público enquanto elegantemente acendia um cigarro. A apresentação excêntrica e over the top trouxe-nos à cabeça a última das supernovas, Chappell Roan. Desde o princípio que se notou uma diferença nas canções quando tocadas ao vivo numa sala, face aos headphones à secretária. Em palco, a voz de Rebe assumia uma posição mais central, com mais garra, fugindo ao lo-fi das gravações. As melodias vocais soavam mais cruas e orgânicas.
Juntando a uma produção moderna a música tradicional espanhola de Lola Flores, Carmen Sevilla e Juanita Reina, Rebe oferece um estilo próprio e único. As melodias poderiam ser uma canção do flamenco de La Marelu ou Las Chuches, se não estivessem acompanhadas de uma produção tão apoiada no DIY e naïve pop. A plateia, na sua maioria jovens espanhóis, cantava em coro todas as canções. O entusiasmo foi maior mais para o final da atuação, quando se ouviu o tema “Marisol”, que integra o último álbum. Dada a demografia e as sonoridades das canções, não era incomum ver mãos graciosas a enrolar o ar à medida que iam descendo despacio, numa reconhecível dança sevilhana.

Depois da atuação de Rebe, fez-se um pequeno intervalo, no qual algumas pessoas abandonaram a sala, para não regressar. Por conseguinte, a sala estava mais vazia na segunda parte. Ainda assim, era uma plateia composta, participativa e entusiasmada, com a qual AMORE interagiu bastante. Em palco, via-se pouco mais do que a artista, em indumentária casual, um microfone, um computador e um teclado. Ainda assim, com este pouco, AMORE mostrou-nos mundos.

A simplicidade saltava à vista, especialmente depois da extravagância de Rebe. Mas destacava-se pelo conhecimento e versatilidade. Mais tarde, em pesquisa, vim a saber que Moreno tinha estudado música clássica no Conservatório de Música. Isso foi percetível durante o concerto. Não havia nada que denunciasse a sua formação clássica especificamente, mas notava-se que alguma formação existia. Era manifesto, tanto na atuação como na composição dos temas, que havia um grau elevado de domínio e à-vontade com a linguagem musical e um nível alto de instrução acerca da cultura tradicional espanhola.
AMORE evidencia a sua versatilidade dentro de uma só música mas também quando comparamos duas músicas do seu repertório e vemos que, de facto, são todas muito distintas. Ao longo do alinhamento, a diversidade também se mostrou. Apresentou-nos músicas que facilmente se emparelhavam com as partes mais suaves e acessíveis do reggaeton eletrónico de Arca. Outras nascem da pop de Rosalía, que Moreno cita como uma influência suprema, mas com investidas experimentais sobre a música ambient. Temos também os laivos shoegaze de “Last Maria On Earth” e o tema ainda por lançar “Amiga”, sobre o término com uma amiga e sentir a sua falta pelas ruas de Madrid.
Como se esta mostra de polivalência não fosse suficiente, a cantora puxou das castanholas na canção “Querió”, mesclando o instrumento clássico andaluz com a produção digital, que estariam à partida em oposição. No meio de todo o vanguardismo que caracteriza AMORE, parece contrassenso dizer que o momento mais impactante da atuação foi também o mais tradicional. Com a sua versão de “Noche No Te Vayas”, um bolero belíssimo de Los Tres Caballeros, AMORE silenciou a sala inteira da Musicbox, abrindo espaço para a gravação da harpa e a proeza vocal de Moreno, que até àquele momento tinha passado despercebida. Foi um momento verdadeiramente comovente e de demonstração da beleza cultural vizinha, bem como do amor que o povo irmão nutre por esta.
Assistir às atuações de Rebe e AMORE parece ter sido um enorme privilégio, principalmente pelo contexto intimista proporcionado pelo nível ainda baixo de fama das artistas. No entanto, não seria de espantar que tal assim não se mantenha por muito mais tempo. Vive-se de há uns anos para cá uma valorização grande das formas culturais em castelhano e uma maior influência das tendências espanholas no panorama mundial. No caso de Rebe, juntamos a esta valorização a ascensão de Chappell Roan como estrela e a consequente procura de artistas semelhantes pelas discográficas, que certamente já está a acontecer. Para AMORE, a sua proficiência e também a possibilidade de ser a “nova Rosalía” fazem igualmente com que se gere um maior interesse na sua música. Ver estas duas artistas na Musicbox torna-se ainda mais especial, pelo facto de estarmos certos de que das próximas vezes que regressarem já tocarão salas maiores.
Deixe um comentário