Mabe Fratti veio a Lisboa com o recente álbum “Sentir Que No Sabes”. A abertura ficou a cargo de Calcutá
Já próxima do seu 30º aniversário, a Galeria Zé dos Bois juntou duas artistas que habitam esferas musicais semelhantes num evento que decorreu no clube B.Leza, no Cais do Sodré. Na noite das bruxas, trocámos as festas universitárias por Mabe Fratti e não nos arrependemos. Ficámos ainda a conhecer a artista portuguesa Calcutá, cujo trabalho certamente seguiremos daqui em diante.
Quer pelo trabalho com o grupo Amor Muere, quer pela discografia a solo, Mabe Fratti faz-se ouvir na fronteira entre a pop e a avant-garde. Com o violoncelo e a voz doce, traz-nos à memória o grande, e poucas vezes lembrado, Arthur Russell, o que significa que poucos fazem o que ela faz. Existe para lá das separações ainda estanques dos géneros musicais. Lançou este ano o seu quarto álbum a solo, Sentir Que No Sabes, a ouvir. O ano passado destacou-se com o álbum do coletivo Amor Muere, A time to love, a time to die, e a colaboração Vidrio, com Titanic e I La Católica, dois dos melhores registos experimentais de 2023.
Calcutá é o nome de projeto da lisboeta Teresa Castro. Marca a sua presença na cena musical portuguesa desde 2014, com passagens pelos conjuntos Mighty Sands e Savage Ohms. Lançou o EP “Overnight” de 2017 e “Real Dog”, uma banda sonora, em 2021.
Calcutá, por Vera Marmelo
Sentada de pernas cruzadas no chão, Calcutá abriu o concerto. A início, ouvia-se apenas o harmónio. À medida que o som grave e arcaico enchia a sala, a artista ia gravando linhas vocais e harmonizando por cima das anteriores. Grande parte da performance de Calcutá consistia nestas melodias etéreas sobrepostas, numa hipnose polifónica vinda de uma só pessoa. Concentrada na atuação, pouco interagiu com o público e apenas por breves momentos passou da linha do chão. No entanto, a música era convocatória, dispensando locuções. Fixava o ouvinte na sua simplicidade e embalava com a esparsidade.
As músicas que Calcutá apresentou teciam uma malha contínua, mais do que existirem como objetos separados, mas a qualidade anestésica da música fazia com que não a interpretássemos como monótona. Era antes uma dispersa neblina eufónica que nos envolveu do princípio ao fim do alinhamento.
Desde as primeiras notas de Calcutá no palco ficou claro por que tinha sido ela a artista escolhida para abrir para Mabe Fratti. Embora o trabalho não seja sobreponível, ambas trabalham a harmonia de forma semelhante, com uma forte presença do baixo – o violoncelo em Fratti e em Calcutá o harmónio. Contrasta com o baixo a voz suave e delicada que volita pelo enleio instrumental cheio. Se simplificada, a estrutura assemelha-se ao canto gregoriano no seu baixo contínuo com o ornamentado tom salmódico. Ainda assim, quando Fratti subiu ao palco, vinha acompanhada de mais dois instrumentistas, sendo natural que a sua sonoridade fosse mais rica.
Mabe Fratti, por Vera Marmelo
Mantendo a mesma linha de paralelismos com o cânone musical, os momentos mais complexos das composições de Fratti retiram muito do contraponto barroco de Bach, numa confluência entrançada de linhas melódicas independentes. O violoncelo tem tanto protagonismo quanto a voz e até mesmo as guitarras. À semelhança de Calcutá, o som preenchia o espaço, mas desta vez eram várias partículas em diferentes direções, num turbilhão coordenado. Num sotaque guatemalteco, que primeiro se estranha e depois se entranha, as palavras iam saltitando por entre o staccato do violoncelo e o reverb da guitarra.
Em dois momentos, a cantora tentou parabenizar a Galeria Zé dos Bois pelo seu 30º aniversário, mas teve sempre dificuldade em pronunciar o nome ou, da primeira vez, sequer lembrar-se das vogais e ditongos que compunham as palavras. Numa interação hilariante com o público, Fratti foi ajudada pelos fãs portugueses, que da segunda vez a congratularam na grande conquista de proferir “Zé dos Bois”. A morte das barreiras entre os géneros musicais há muito que é anunciada, mas cada vez mais vemos cross-overs de músicos que juntam os clichés de vários géneros, num cocktail sem graça e pouco autêntico. Com Mabe Fratti e Calcutá, podemos assistir ao que é realmente trabalhar fora dos eixos convencionais, com uma combinação única de referências que se traduz em música difícil de classificar e enquadrar no atual paradigma. Foi uma noite em que tivemos o privilégio de espreitar para o futuro.
Deixe um comentário