F. Produção. (2024). Cena da peça "A Primeira Vista – Prima Facie". Fotografia por FIlipe Ferreira

A preciosidade do teatro

O papel do teatro como forma de arte, entretenimento e reflexão. Um incentivo para substituir o scrolling interminável pela cultura, a um custo acessível e recompensa elevada.

Durante anos, o teatro era não só uma das poucas formas de socialização, mas também uma oportunidade de esquecer os problemas, mesmo que por um período de tempo limitado. Sair de casa era para trabalhar e as formas de arte eram acessíveis apenas a uma pequena parte da sociedade. Os espaços culturais destinavam-se àqueles que eram considerados membros importantes da sociedade e esperava-se que usassem roupas caras e agissem da melhor forma. Parece que, desde muito cedo, o entretenimento já era classificado como algo de elite, cujo lugar era atribuído baseado em estatuto. Porque será que atribuímos tanto valor, desde sempre, a esta ideia de sermos distraídos? 

É fascinante como a sociedade evoluiu de poucos métodos de lazer e distração para encontrar formas de nos distrairmos 24 horas por dia. Na minha opinião, já não valorizamos a possibilidade de ignorar os nossos próprios pensamentos durante algumas horas, uma vez que, com as redes sociais e a evolução tecnológica, podemos passar uma vida inteira sem ter de ouvir a nossa voz interior. Desde muito cedo que quis desafiar essas barreiras, pois adoro pensar e sentar-me com os meus pensamentos. No entanto, é inegável que se pode tornar avassalador e, por isso, por vezes, torna-se obrigatório encontrar algo novo em que nos possamos concentrar. Neste sentido, recorri à velha forma de relaxamento, a cultura, que converte pensamentos em arte. Sem que não soubesse, era a mudança que estava a precisar para melhorar a minha saúde mental e sentir-me melhor do que nunca. 

A primeira peça que vi, talvez responsável pelo entusiasmo que sinto hoje, foi “Remédio de Enda Walsh” com a participação de Rúben Gomes, Íris Runa, Maria Jorge e Pedro Domingos (baterista). Esta peça é um drama com um toque de comédia sobre a obscura realidade que é a maneira degradante com que se tratavam pessoas com distúrbios mentais. Algumas medidas criativas foram adotadas para tornar a peça imensamente pessoal, tais como um voice-over arrepiante e um dilema moral extremamente impactante entre duas mulheres chamadas Maria (interpretado por Íris Runa e Maria Jorge). Admitindo que estando na primeira fila tivesse ajudado a esta sensação, senti-me sozinha numa sala com John Kane a ouvi-lo falar sobre a sua infância triste e bonita apenas para mim. A interpretação de Rúben Gomes emocionava qualquer um. Com uma profundeza admirável mas uma ambição única, não ​poderia ter sido entregue a melhores mãos. 

Expresso. (2023). Cena da peça “Remédio”, de Enda Walsh [Fotografia]. Expresso. https://expresso.pt/cultura/teatro-danca/2023-11-18-Teatro-Remedio-de-Enda-Walsh-e-sobre-cuidar-dos-vivos-49bf13ec

Outra peça que estimo na minha memória foi “O meu amigo H” , uma adaptação de uma peça japonesa de Yukio Mishima feita por Albano Jerónimo e Cláudia Lucas Chéu. A peça original foca-se no ditador alemão mas esta adaptação aborda as mesmas sensações de descontentamento e injustiças nas nossas democracias. Os atores eram Albano Jerónimo: o capitalista, Pedro Lacerda: o sindicalista, Rodrigo Tomás: o governador, Ruben Gomes: o militar. Todos tiveram intervenções poéticas e de costas para o público com uma câmera grande plano das suas expressões projetadas no fundo do palco. Havia algo poderoso na maneira como eles se encontravam de costas para o público e ao mesmo tempo mais exposto e reais. Os actores são colocados de costas para que pareçam inalcançáveis sem que nos seja dado acesso às suas vulnerabilidades. Ao mesmo tempo, a proximidade do plano que projetam no ecrã permite-nos, enquanto público, ver como as suas mensagens de poder e domínio provêm de mensageiros inseguros e irrealistas. Ouve-se a projeção das suas vozes e a certeza da sua intuição, mas vê-se suor, stress e falta de fiabilidade. Esta peça problemática, fria e imprevisível convida a contemplar temáticas profundas após a sua visualização. 

A última peça que tive oportunidade de assistir acompanhava uma advogada de defesa, interpretação de Margarida Vila Nova, e o seu sucesso profissional em casos de defesa de acusações de abuso sexual. Sozinha, a atriz narra uma experiência arrepiante que obriga a uma profunda reflexão sobre o sistema de justiça existente nos dias de hoje. Com uma interpretação inspiradora que transporta cada um de nós, de forma suave mas imediata, para um universo paralelo e que enche o ambiente de um silêncio abundante ainda que envolvendo uma sala cheia pessoas, prendendo-nos irremediavelmente à cadeira, tal é a forma admirável como esta personagem coloca em palavras pensamentos que muitos sentem mas que não conseguem vocalizar. 

De alguma forma, todos nós já nos sentimos em conflito com a nossa própria hipocrisia, seja ao contornar as regras para nosso próprio prazer e justificá-lo com desculpas externas ou ao acusar os outros de actos errados quando teríamos agido da mesma forma. Margarida Vila Nova, torna-se a vítima à espera de um ataque que há anos inflige aos outros. Especialmente devido ao seu enredo extremamente sensível e emotivo, as suas próprias realizações introspectivas pessoais atingem-nos como balas se nos permitirmos reconhecer a facilidade com que os papéis se invertem. E como nos sentimos no outro lado da moeda. A peça chama-se “À Primeira Vista” e encontra-se esgotada em quase todo o lado, se tivesse oportunidade de assistir uma segunda vez, não hesitava. 

O Teatro é uma forma de expressão, um posicionamento cultural e um instrumento de reflexão para mentes ávidas que procuram novas interpretações do mundo. Como jovem, sinto o teatro como uma poderosa arte a preservar, não apenas pelo seu simbolismo histórico-cultural, mas como meio de comunicação dos mais variados temas com impacto social. 

Recomendo assistir a peças rotineiramente quer se procure entretenimento ou reflexão isoladamente, quer se pretenda obter de forma repartida toda a preciosidade que as duas categorias combinadas conseguem representar.

Culturgest. (2024). Fotografia por Renato Cruz Santos. Cena da peça “O Meu Amigo H.” de Albano Jerónimo e Cláudia Lucas Chéu [Fotografia]. Culturgest. https://www.culturgest.pt/pt/programacao/albano-jeronimo-claudia-lucas-cheu-o-meu-amigo-h/

Entretenimento 

Independentemente do género (drama, comédia, tragédia, etc) peças de teatro contam histórias, sejam elas fictícios ou reais. Esta forma de expressão artística, como poucos, exerce um poder sobredotado sobre o nosso sentido crítico, a nossa capacidade introspectiva e o confronto direto com emoções que tentamos ofuscar​. Toda a experiência transporta-nos para uma viagem muito pessoal ao fundo do nosso imaginário e das nossas convicções pessoais. O teatro proporciona-nos a possibilidade de ver um espetáculo em 4D de forma real e harmoniosa. Seja qual for a emoção representada, a pureza implícita à falta de produção e à inexistência de filtros diferencia esta arte. Também o elemento surpresa nunca desilude, sendo que a performance de cada momento difere de ator para ator, de produção para produção ou até de dia para dia. 

O teatro abraça o erro, que por si caracteriza os seres humanos, como uma metáfora para o mundo real. Não existe perfeição e é isso que o torna perfeito. 

Reflexão 

Dentro de simples diálogos, monólogos, expressões e ações existe um espaço vazio guardado para a interpretação. Sem manual de instruções ou conhecimento do conceito de verdade existe um espectro que abre espaço para que cada um possa interpretar a peça à sua maneira, seja esta igual ou diferente do espectador do lado. A conjugação de sons, cheiros, palavras e emoções serve como íman para que um conjunto de emoções e reações surjam de forma inesperada e individual. Ao ativar o espírito crítico, muitas vezes enterrado debaixo de inúmeras camadas sociais e ideológicas, o mais profundo sentimento surge de forma sorrateira mas impactante, fazendo com que se interiorize uma lição, seja ela qual for. 

Aconselho vivamente os teatros dos Artistas Unidos, uma sociedade artística portuguesa que adota imensas obras com uma qualidade arrepiante através da participação de diversos artistas talentosos em diversas salas em todo o país. 

Em conclusão, sinto que a minha vida enriqueceu bastante ao dar prioridade às experiências culturais que coexistem no nosso tempo. Não é apenas um prazer poder testemunhar o trabalho árduo de mentes criativas e únicas, mas também impulsiona a melhorar a própria vida através das reflexões que acompanham as peças.    


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