“A madrugada que eu esperava” é um musical, protagonizado ora por Carolina Deslandes ora por Bárbara Tinoco, de uma história não só de amor romântico, porém, também político, entre Olivia e Francisco, uma idealista e um cínico. Estas personagens, bem como as que acompanham o seu enredo, enfrentam os desafios socio-ideo-políticos vividos no “pré, durante e pós” revolução de 25 de abril de 1974, articulando temas tão juntos ao coração, apesar de incompatíveis à primeira vista. A peça, em cena até 28 de abril, no Teatro Maria Matos, conta com a produção de “Força de Produção” e “Primeira Linha” e com música ao vivo, da autoria das atrizes protagonistas.
É-nos apresentado o encontro inicial das personagens, que faz nascer uma chama perigosa, romântica e reformadora, que persistia face à contradição, quer de pai de Francisco, membro da PIDE, quer do regime ditatorial instaurado. Esta chama é rapidamente apagada pelo rebuliço político onde estas se encontram, levando à sua separação durante três anos: Olivia para Paris, onde persegue os seus sonhos em palco juntamente com a irmãClara , e Francisco para a guerra, opção que tomou em alternativa a magoar quem mais amava.
Somos levados ao dia do seu reecontro (e da revolução) marcado pela quebra da dependência de Francisco de seu pai. O caminho que ambos constroem em conjunto é bonito, porém caracterizado por sentimentos que sucedem a mudança: “o que acontece agora?”. Os rumos diferentes que tinham em mente levaram a que, apenas após as suas carreiras de sucesso e o “articular” de vidas pessoais com o sentimento de liberdade (até então, desconhecida), o par se reencontrasse.
Os próprios três segmentos em que a peça está dividida, “A cantiga é uma arma-1971”, “Somos filhos da madrugada-1974” e “Um verso em branco à espera do futuro-1975”, transportam os sentimentos característicos das três épocas e instauram-nos em nós, à medida que somos levados pelo enredo.

Contrariamente ao que pensava, a composição, que apela ao poema de Sophia de Mello Breyner Andersen, intitulado “25 de abril”, não é o típico apelo à liberdade face ao regime fascista e à manutenção deste mesmo direito por séculos posteriores. É uma obra que, simbioticamente, traz os valores do feminismo, sob a forma de uma personagem tão emblemática como Olivia; os laços presos ao passado e a uma família opositora (que não deixa de ser família), com a personalidade carismática de Francisco; a oposição ao regime ditatorial de Salazar, com a ação conjunta, juvenil e nascente destes dois; e a abonação ao mesmo (ou até a oposição à oposição), com o pai de Francisco.
A complexidade dos temas abordados, bem como a interligação entre eles, expõem uma história que é muito mais que a liberdade política e ideológica. A liberdade de amar sem barreiras, viver o “(…) fogo que arde sem se ver”, ter o coração a bater fora do peito, viver “um amor que de doer quase nos mata”, tal como o diz Olivia, mas também a liberdade de expressão, de quebrar tabus, como o faz Francisco, ao seguir o teatro e a comédia no seu futuro. A liberdade de ser mulher e ler livros até então proibidos, de inverter os papéis tradiconais de Romeu e Julieta, tal como o fazem as personagens principais, numa peça onde a censura não entra nem como figurante, porque “paixão é revolução, amor é democracia”.

No entanto, a essência da mensagem está para além do que é dito ou feito, está também na forma como é vinculada. A atitude e entoação das falas (tão certa que é correta) dá personalidade às personagens, cada uma com a garra de quem se quer libertar, porém, manifestada de forma tão única. O cenário, simples mas versátil, pode também apelar à facilidade da mudança: para o bom quando o sonho é perseguido não por um, mas por todos, e para o mau, quando nos esquecemos de como aqui chegámos. E em conjunto com as músicas, compostas caracteristicamente para cada época que acompanhamos, e o facto destas serem tocadas ao vivo, enfatiza-se a base onde a peça foi construída: o gosto de existir. A liberdade de “bater o pé” quando acreditamos que é certo, e de não nos sentarmos mesmo quando nos exigem. A liberdade de traçar à nossa frente um caminho, com as bermas que nós próprios definimos, mesmo que não dê foz para que outras estradas lá desaguem.
Este momento cultural (que é tanto mais do que só isso- um “momento”-, é uma vida inteira) nasce num mundo que ignora o seu maior propósito, o seu maior objetivo: a liberdade. A história é cíclica, é verdade, mas será possível o esquecimento quando ainda ontem “lá” estivemos? Não é ironia, é lamento; é súplica; é obrigação, direito e dever. E assim o é a democracia. E o amor.
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