Durante os dias 24 e 25 de outubro de 2024 a NOVA School of Business and Economics (NOVA SBE) foi o palco de um dos principais eventos focados no debate de temas da atualidade sob múltiplas perspetivas, as Conferências do Estoril de 2024, organizadas pela NOVA SBE e NOVA Medical School, em parceria com o Digital Data Design Institute de Harvard.
O evento contou com mais de quatro mil participantes e 80 oradores nacionais e internacionais que se juntaram para refletir sobre sustentabilidade, alterações climáticas, promoção da paz, saúde, igualdade de género, economia e o futuro da tecnologia, em torno do tema “Time To Rethink“.
Neste primeiro artigo poderá encontrar a cobertura da FRONTAL de múltiplas palestras que ocorreram no primeiro dia do evento.
How do you lead a nation towards lasting peace | Como liderar uma nação para a paz duradora
As lições de Timor-Leste, 25 anos depois
Cobertura por Rafael Pereira

José Ramos-Horta a ser entrevistado por João Póvoa Marinheiro, dia 24 de outubro de 2024 nas Conferências do Estoril | Créditos de imagem: Boa Onda Produções
Passaram-se 25 anos desde a independência do Timor-Leste, e, ao refletir sobre este marco, surge uma questão crucial: quais são as lições que o mundo pode aprender com a experiência timorense em busca de uma paz duradoura? Num mundo onde as ameaças de guerra se repetem, como é o caso da Ucrânia e Gaza, Timor-Leste oferece uma perspetiva única sobre como ultrapassar a violência com diplomacia e respeito mútuo, servindo de exemplo para líderes e nações em situações de conflito.
Diferente de muitos movimentos de independência, os timorenses nunca recorreram ao sequestro ou à demonização do povo indonésio. Pelo contrário, sempre procuraram enfatizar que a paz verdadeira só pode ser alcançada através de um entendimento bilateral. Tal como afirma José Ramos-Horta “não pode haver um acordo unilateral para a paz – é preciso compromisso de ambas as partes”. Esta visão ressalta a importância de um pós-conflito que não apenas reconhece, mas também reconcilia as feridas causadas, sendo o reconhecimento de crimes de guerra um passo fundamental para uma relação saudável e de confiança.
A construção de relações de confiança após a guerra é essencial, e, neste contexto, Timor-Leste destaca-se como uma democracia jovem que, apesar de partilhar uma relação diplomática e económica com a China, mantém-se fiel aos seus valores democráticos. Timor é o único país de “terceiro mundo” no topo dos índices de democracia mundial e foi um dos primeiros países a condenar a invasão russa da Ucrânia, contribuindo com 2 milhões de dólares para organizações que apoiam refugiados ucranianos. Este posicionamento é exemplar de como uma nação pode alinhar os seus interesses económicos com a sua identidade democrática sem comprometer os seus princípios.
Esta história é também um lembrete dos desafios internos que movimentos pró-independência enfrentam. É um erro comum pensar que estes movimentos devem ser homogéneos e livres de conflitos internos. Timor-Leste conseguiu superar estas divisões através de diálogo e coesão, um esforço essencial para qualquer país que aspire a paz e unidade nacionais duradouras.
A jornada de Timor-Leste demonstra que, para alcançar uma paz verdadeira, é necessário reconhecer o papel de ambos os lados no conflito, ter a coragem de confrontar as próprias falhas, e, sobretudo, manter um compromisso com o diálogo contínuo e o respeito pelos direitos humanos.
How do you keep the spirit of a nation alive in a time of war | Como manter o espírito de uma nação vivo em tempos de guerra
Cobertura por Rafael Pereira

Olena Zelenska, dia 24 de outubro de 2024 nas Conferências do Estoril | Créditos de imagem: Boa Onda Produções
Em tempos de conflito, manter o espírito de uma nação vivo exige coragem, unidade e apoio incondicional àqueles que enfrentam os horrores da guerra. A guerra na Ucrânia continua a ser um lembrete brutal de como a ameaça russa deve ser levada a sério — uma ameaça que não só pesa sobre a Ucrânia, mas que se estende até às fronteiras da Europa, incluindo Portugal, alvo potencial de um poder que não hesita em reescrever fronteiras e direitos.
A solidariedade com o povo ucraniano não é apenas um dever moral, mas uma necessidade urgente e concreta. Entre as ações mais importantes estão os fundos de apoio para ajudar ucranianos a enfrentar os traumas da guerra, especialmente através de programas de saúde mental. Esta atenção especial às feridas invisíveis de uma nação em sofrimento é crucial para preservar a força de um povo. Para muitos, a batalha não se limita aos campos de combate. Continua nas vidas que ficaram para trás, nas memórias traumáticas e nos desafios diários de adaptação à realidade do conflito.
A crise humanitária acentua-se ainda mais com relatos de cerca de 19 mil crianças ucranianas retiradas para território russo, uma perda que não só desestrutura famílias, mas que também é um golpe profundo no futuro da identidade ucraniana. É urgente que a comunidade internacional tome medidas para evitar que outras nações enfrentem tragédias semelhantes, tal como o genocídio em curso em Gaza, cujas repercussões ferem o espírito humano e testam os limites da compaixão mundial.
Manter o espírito de uma nação vivo em tempos de guerra é, portanto, um apelo à justiça e à solidariedade global. Exige medidas práticas, sim, mas também um compromisso contínuo de apoio e esperança, para que, no meio do caos, a essência e a identidade de um povo resistam, prontas a florescer na paz que virá.
How to uphold human rights amid war | Como defender os direitos humanos numa guerra
As lições que aprendemos da luta da Ucrânia pela Justiça e Dignidade
Cobertura por Pedro Picoito

Oleksandra Matviichuk, dia 24 de outubro de 2024 nas Conferências do Estoril | Créditos de imagem: Boa Onda Produções
Sendo advogada de direitos humanos e ucraniana, Oleksandra Matviichuk, presidente do Centro para Liberdades Civis e Nobel da Paz 2022, focou-se na violação dos mesmos direitos na presente guerra com a Rússia e o tom geral foi de denúncia. Começou por afirmar, com desgosto, muitas vezes ouvir que a liberdade e os direitos humanos são importantes, mas os benefícios económicos vêm primeiro. Deixou inicialmente dois alertas: por vezes, a lei não funciona, e o sistema inteiro das Nações Unidas não é suficiente para parar a Rússia. Explicou ainda que a segurança global depende da liberdade individual, uma vez que a segurança global começa com a segurança humana, e esta última, por sua vez, advém da liberdade. Ressalvou também que a Declaração dos Direitos Humanos é posta em causa até em países democráticos atualmente.
Matviichuk apontou o dedo de forma clara em dois temas diferentes. Acusou por nome a China, a Síria e a Coreia do Norte por compactuarem e ajudarem a Rússia na violação dos direitos humanos. Expôs também as ações das tropas russas em território ucraniano e por todo o mundo, classificando-as como horríveis. Matviicuk alega que, por nunca terem sido castigados, os soldados acreditam poder fazer tudo.
A advogada assegurou que o conflito entre a Rússia e a Ucrânia não se resumia a uma guerra entre dois países, mas era antes uma guerra entre dois sistemas, um autoritário e outro democrático. “A Paz não vem quando o país invadido para de lutar – isso é ocupação”, declarou, para grande apoio do público, e a ocupação trazia violência sexual, tortura, raptos e eliminação de identidade.
Nas considerações finais, relembrou que a Europa está segura porque a Ucrânia ainda não parou de lutar e que o objetivo de Putin é ir para lá da Ucrânia. Deixou também uma mensagem de motivação, garantindo que ainda temos a possibilidade de lutar pelo nosso futuro e pelo futuro dos nossos filhos. “As pessoas comuns podem mudar o mundo”, atestou.
Why there is no peace without women | Porque não há paz sem as mulheres
Cobertura por Rafael Pereira

Yulia Svyrydenko e Senida Mesi, dia 24 de outubro de 2024 nas Conferências do Estoril | Créditos de imagem: Boa Onda Produções
A paz não pode existir sem as mulheres, pois são elas que frequentemente convertem a dor em força e assumem papéis fundamentais na reconstrução das suas comunidades. Em tempos de crise, o contributo das mulheres é indispensável para transformar traumas em resiliência, criando bases para uma sociedade mais inclusiva e preparada para os desafios do futuro.
Na Ucrânia, este princípio ganha forma através de várias iniciativas estratégicas voltadas para o empoderamento feminino. As mulheres ucranianas estão a liderar projetos que promovem mudanças legislativas, lançam programas de empreendedorismo e oferecem formações profissionais, tudo com o intuito de criar oportunidades para quem, num dia de paz, pretende reconstruir o país. Estes programas são mais do que simples respostas imediatas: são um investimento no potencial das mulheres para revitalizar o país e criar condições que incentivem o retorno de milhares de ucranianos.
As mulheres têm um papel único em qualquer processo de paz, pois são elas que mantêm as redes de suporte social e emocional que são cruciais em tempos de adversidade. Sem o envolvimento delas, não há paz completa. A sua capacidade de transformar a dor em resiliência e o seu compromisso com a reconstrução da comunidade revelam que uma paz genuína depende da participação ativa e da força das mulheres em todas as esferas da sociedade.
No entanto, numa análise cuidadosa dos esforços de paz atuais e o que foi falado nestes 20 minutos, nota-se uma representação ainda limitada de mulheres de diversas origens, com destaque principalmente para as mulheres brancas. Esta realidade levanta uma questão importante: será que se reconhecem e valorizam as lutas e as forças das mulheres de Gaza, que enfrentam horrores diários, ou será que os seus contributos e sofrimentos continuarão a ser ignorados?
How to heal a world scarred by conflict | Como melhorar um mundo marcado pelo conflito
Um apelo de fim à guerra vindo de uma refugiada
Cobertura por Maria Kranendonk

Zaynad Abdi, dia 24 de outubro de 2024 nas Conferências do Estoril | Créditos de imagem: Boa Onda Produções
Quantos de nós conhecemos, contactámos ou nos conectamos com um refugiado? Quanto sabemos realmente sobre as suas experiências individuais de vida, que vão muito além do coletivo sofrimento testemunhado nas notícias?
Neste momento, há mais de 120 milhões de pessoas deslocadas no mundo. Geralmente, quando ouvimos falar de refugiados, não há um rosto ligado a uma história. Mas Zaynab Abdi, ela própria refugiada, torna isso possível, pessoal e comovente.
“Imagine deixar para trás as suas memórias, a sua casa, a rua favorita da sua cidade natal”, diz-nos. Esta é parte da realidade que Zaynab teve de enfrentar durante a sua infância. Desde o Iémen, passando pela Somália até ao Egito, foi sempre forçada a fugir de onde vivia devido a conflitos, e os cenários de guerra cresceram consigo. Foi ainda separada da sua irmã no processo de obtenção de vistos para entrada nos EUA, a mesma irmã que sobreviveu a uma missão de refugiados no mar, onde 2500 pessoas morreram, sem conseguir alcançar a liberdade. Os sonhos que construía, os objetivos que estabelecia viram-se incapazes de se tornar realidade.
“(…) nem todos conseguem entrar (…)”, diz-nos, sabendo em primeira mão o que isso implica.
Só quando chegou aos EUA, reunida com a mãe, conseguiu perseguir o seu maior sonho, que crescia dentro de si há já muito: reivindicar uma história de vida que desde sempre foi pilotada pela guerra. Alimentada pelo que tinha vivenciado, a luta pelos direitos dos refugiados tornou-se o seu objetivo de vida, tendo-se posicionado na linha da frente das suas necessidades mais urgentes.
Zaynab insiste que não precisamos de sofrer por conflito para termos a motivação de lutar por aqueles que sofrem. Segundo a ativista, a empatia, apesar de necessária, não é suficiente para combater a guerra se não for acompanhada de ação, e a própria viveu as consequências da ausência de mudança. Temos que nos dirigir aos líderes mundiais, fazer ouvir as nossas vozes jovens e garantir que são compreendidas.
Nada é complicado ou demasiado delicado para omitir quando se fala de guerra. É apenas desconfortável, porque a ela vive inerente a necessidade evidente de mudança, exigindo ser ouvida.
The middle east in turmoil – how to protect the civilian population | O Médio Oriente em tumulto– como proteger a população civil
Cobertura por Rafael Pereira

Marta Lorenzo, dia 24 de outubro de 2024 nas Conferências do Estoril | Créditos de imagem: Boa Onda Produções
Marta Lorenzo, Diretora do Escritório de Representação da UNRWA para a Europa, alertou para as realidades devastadoras que milhões enfrentam hoje em zonas de conflito como Gaza e Líbano. Ao desafiar o público a imaginar-se nos cenários de guerra atuais, Marta trouxe à superfície a brutalidade diária sofrida por civis e a inaceitável precariedade das condições de vida. Em Gaza, por exemplo, as mulheres são forçadas a rapar o cabelo devido à falta de condições mínimas de higiene e saúde, refletindo um quadro de completa negligência humanitária.
Com cerca de 2 milhões de pessoas confinadas a um espaço equivalente a um terço da cidade de Lisboa, e sem acesso a eletricidade, alimentos ou água, a situação torna-se desumana. As crianças, muitas das quais a correspondente acompanhou pessoalmente, enfrentam um destino trágico: não só estão privadas de cuidados básicos, como as suas vidas são, muitas vezes, brutalmente interrompidas. Na região norte do estreito de Gaza, os relatos de Marta falam de pessoas que são corpos sem alma, esvaziados de esperança e vida, num ambiente onde até militares recorrem a pedidos de socorro, conscientes de que o custo humano da guerra é devastador.
Entre os efeitos colaterais deste conflito, a interrupção da segunda campanha de vacinação contra a poliomielite devido à intervenção militar israelita revela uma situação que Marta classificou como “guerra biológica”. Além disso, membros da sua equipa têm sido retidos à força, apontados com armas e até presos, enquanto edifícios da ONU são alvo direto de ataques, o que denuncia uma violação grave dos direitos humanitários. Como Marta enfatizou, “Podemos vacinar as crianças contra doenças, mas não contra bombas”.
Para Marta Lorenzo, as campanhas de desinformação e o desrespeito aos acordos de paz da ONU não podem ser ignorados, pois representam um ataque às instituições que foram criadas para garantir a paz. Aliás, evidencia que o que se poderá estar a criar é um novo precedente, onde Israel passa a ditar normas internacionais ao custo da vida civil e do respeito pelos direitos humanos. Em 2024, já se registaram mais mortes no West Bank do que em qualquer outro ano, um marco sombrio que reafirma a urgência de uma intervenção para proteger a população civil e preservar a dignidade humana.
How the united nations is shaping the future of multilateralism | Como as Nações Unidas estão a moldar o futuro do multilateralismo
Cobertura por Rafael Pereira

Sherri Aldis, dia 24 de outubro de 2024 nas Conferências do Estoril | Créditos de imagem: Boa Onda Produções
Num mundo onde a integridade da informação se torna cada vez mais crucial para a paz e harmonia globais, Sherri Aldis, Diretora do Centro de Informação Regional da ONU para a Europa Ocidental, sublinha o papel indispensável das Nações Unidas no futuro do multilateralismo. Nesta palestra, Sherri destacou como o compromisso da ONU com a verdade, a transparência e a inovação é fundamental para construir uma sociedade mais inclusiva e próspera, onde o conhecimento promove o progresso e gera mudanças positivas.
Atualmente, um terço da população mundial continua sem acesso à internet, enquanto as disparidades na forma como a informação circula aumentam. O perigo do uso indevido da inteligência artificial, que já facilita a falsificação de documentos humanos e a proliferação de “deepfakes”, ilustra bem o risco de um ambiente informativo tóxico. Conflitos violentos, eventos eleitorais polarizantes, como o ano eleitoral nos EUA, e o impacto da indústria de combustíveis fósseis na desinformação compõem um panorama onde a verdade é frequentemente subjugada pelo interesse próprio e agendas políticas.
As redes sociais amplificam ainda mais este desafio, pois um terço da população global obtém notícias exclusivamente dos seus feeds de redes sociais, onde algoritmos favorecem conteúdos sensacionalistas e influenciam o que se torna “verdade”. Esta realidade é alarmante para a ONU, que testemunha uma queda na liberdade de imprensa e a normalização de discursos de ódio, incluindo antissemitismo e islamofobia, enquanto as teorias da conspiração se tornam mais frequentes.
Diante desta crise informativa, Sherri Aldis defende a necessidade de um esforço conjunto entre governos e organizações internacionais para combater a desinformação. Em antecipação à Cimeira do Futuro, a ONU está a trabalhar para enfrentar estes desafios globais e reformar instituições que se mostram desatualizadas. Um dos pontos fundamentais é o Pacto Digital Global, um compromisso entre nações para regular o uso da IA e criar uma mesa-redonda onde o papel da tecnologia no mundo possa ser discutido e monitorizado.
A celebração do Dia das Nações Unidas serve, então, como um lembrete do compromisso da ONU com uma ordem multilateral onde a integridade da informação é uma prioridade, pois só assim será possível promover a paz, a justiça e a verdade em escala global.
Deixe um comentário