As visões expressas neste artigo refletem única e exclusivamente as visões do autor do mesmo, não refletindo necessariamente a visão ou linha editorial da FRONTAL. O autor preferiu manter-se anónimo.
A história das universidades como polos de protesto e mudança social é longa e profundamente marcada por momentos de transformação. As instituições de ensino, desde o seu surgimento, têm sido locais onde ideias de liberdade, direitos civis e justiça social florescem e se consolidam. Basta recordarmos o movimento de maio de 68 em França, quando estudantes da Universidade de Paris protestaram contra o autoritarismo e os modelos de ensino tradicional. Estes protestos desencadearam uma onda de transformações sociais e políticas, espalhando-se rapidamente por toda a Europa e o mundo ocidental. Outro exemplo é o caso da Universidade de Berkeley nos Estados Unidos, onde o Movimento Livre de Expressão dos anos 60 foi um catalisador para o ativismo antiguerra e pelos direitos civis. Esses movimentos trouxeram mudanças tangíveis ao sistema, demonstrando o papel fundamental das universidades como plataformas de voz e ação social. Assim, é inegável que as universidades são espaços cruciais para a “shaping of change,” onde as futuras gerações confrontam o status quo e levantam questões que desafiam as estruturas de poder.
Contudo, no contexto atual, a reação contra os estudantes da NOVA Medical School ilustra uma hipocrisia flagrante. Critica-se os alunos por ocuparem um espaço académico, por aparentemente “quebrarem a lei”, enquanto a própria instituição mantém relações com universidades israelitas, um país que, segundo a ONU e várias organizações de direitos humanos, está envolvido em práticas que podem ser consideradas limpeza étnica. Neste ponto, é importante refletir sobre a natureza da lei. As leis foram muitas vezes construídas para defender interesses específicos, refletindo o poder de quem está no comando. A história ensina-nos que as leis podem e devem ser questionadas, especialmente quando mantêm estruturas injustas. Portugal, como membro da ONU, deveria, em tese, alinhar-se com os princípios de direitos humanos que a organização defende. No entanto, o governo português e muitas instituições têm mantido uma postura passiva, mantendo relações com um Estado que tem desafiado a autoridade da ONU. Essa inércia institucional reforça uma narrativa de impunidade para as elites e cria um sentimento de frustração nos cidadãos, especialmente entre os jovens que veem a diplomacia de fachada desmoronar perante uma crise humanitária.
A ocupação da faculdade pelos estudantes foi uma ação que desrespeitou normas institucionais, mas é fundamental contextualizar essa atitude. Este ato, para além de ilegal, deve ser visto como um gesto de desespero perante a impunidade das elites e a apatia das instituições. Na história, foram protestos e revoluções que quebraram o paradigma de uma sociedade hierárquica e injusta, como foi o caso da luta contra o apartheid na África do Sul, o movimento pelos direitos civis nos EUA contra as leis de Jim Crow, e as sufragistas que desafiaram a sociedade patriarcal do início do século XX. Esses movimentos foram, no seu tempo, criticados e considerados radicais. Hoje, reconhecemos que trouxeram justiça e ampliaram os direitos humanos. É injusto desvalorizar a luta dos estudantes da NOVA comparando-a de forma depreciativa com essas lutas passadas, pois em ambas as situações, os envolvidos acreditaram genuinamente nos seus valores e atuaram em prol de uma sociedade mais justa. A atitude dos estudantes é ainda mais válida quando consideramos que a própria faculdade promoveu o Estoril Conferences, onde a questão do genocídio palestiniano foi discutida com destaque, e os alunos foram incentivados a ouvir os discursos de figuras da ONU sobre a crise em Gaza.
A indiferença, e por vezes, desprezo de alguns colegas de medicina face à violência sofrida pelos manifestantes e ao genocídio em curso em Gaza é, sem dúvida, preocupante. A falta de empatia e de pensamento crítico entre futuros profissionais de saúde revela uma erosão de valores fundamentais que são essenciais para quem trabalha no setor. Ao aceitarem a violência policial e o sofrimento humano com passividade, esses estudantes recordam a complacência de muitos cidadãos europeus perante as atrocidades do regime nazi, numa Alemanha onde o conformismo e a aceitação cega da autoridade levaram a tragédias de escala inenarrável. Quem discorda com o que foi anteriormente descrito, pode estar neste momento a pensar em “radicalismo da esquerda caviar cujas revoltas desafiam as normas democráticas”. No entanto, precisamos de relembrar que a democracia, quando mal protegida, pode abrir caminho para o autoritarismo, como se observa no crescimento de movimentos de extrema-direita na Europa e na vitória de Trump nos EUA, que promoveu políticas desfavoráveis à liberdade de agir naquilo que podiam para que a faculdade que eles frequentam deixasse de ter relações com expressão e aos direitos do povo, favorecendo um sistema de elites. Por sua vez, estes estudantes fizeram algo com o seu privilégio, não causaram injúria a nenhuma pessoa e tentaram outra que pertence a um país que ativamente matou 43603 palestinos, dos quais 16765 são crianças, com mais de 100000 feridos e 10000 pessoas desaparecidas. Aliás, pelo menos foram mortos 165 médicos, 260 enfermeiros e 484 profissionais associados à saúde. E quem esteja a pensar que estes números são sobrestimados, veja o que diz a ONG “Doctors of the World” sobre uma carta escrita por diversos médicos e investigadores de saúde pública publicada no The Lancet em julho de 2024: “O número de mortos de 186 mil mencionado no The Lancet é consistente com a situação sanitária, militar e geopolítica devido ao bloqueio marítimo, aéreo e terrestre imposto à Faixa de Gaza”, afirma Jean-François Corty, médico humanitário e presidente da ONG. Médicos do Mundo. “Esta estimativa é um verdadeiro reflexo da tragédia absoluta vivida no terreno pela população.” “Tenho dito ainda em Novembro/Dezembro que os números que estão a ser avançados estão subestimados em relação à realidade, num contexto onde há muita propaganda em torno do número de mortos, como é o caso em muitos conflitos e não exclusivamente em Gaza. início da controvérsia sobre os números do Ministério da Saúde do Hamas, que provavelmente estão errados, eu disse que provavelmente estão errados, mas porque estão SUBESTIMADOS”. Com esta informação, deverão os alunos manter-se inertes, apáticos, sem nada a fazer? Será mesmo a defesa dos direitos humanos e o direito de protesto algo que deva ser classificado como de esquerda/direita? Será a ocupação de uma sala mesmo “radicalismo”, ocupações que tem um contexto histórico e fulcral nos direitos que hoje todos defendemos?
Portanto, ao julgarmos esses jovens, não devemos ignorar o contexto histórico e a dimensão moral das suas ações. A democracia não é apenas um sistema de governo, mas um exercício contínuo de questionamento e participação ativa. Os protestos pacíficos e as ações de resistência civil, como os dos estudantes da NOVA, são a essência de uma sociedade livre e devem ser compreendidos como tal. Estes alunos, ao arriscarem a sua reputação e o seu futuro académico, demonstraram uma determinação que deveria ser respeitada e, acima de tudo, compreendida, e não julgados com frases feitas e generalizações acríticas, que só contribuem mais para o deslocamento da janela de Overton cada vez mais para o extremismo e para a falta de empatia.
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