Num terceiro e último dia marcado pela diversidade de estilos musicais, Ana Moura misturou o fado com o pop numa atuação inegavelmente sua. Raye conquistou o público com a sua presença genuína numa performance repleta de emoção. Burna Boy fechou o palco MEO com os ritmos africanos do seu poderoso afrobeat.
Ainda era fim de tarde quando a fadista portuguesa tomou o palco principal do Kalorama perante um público marcadamente menor que os dois dias anteriores (coincidiu, por azar, com o Sporting-Porto, e em Portugal, como sabemos, o futebol manda). Apesar disso, Ana Moura entrou com uma atitude que já só surpreende quem não a conhece. “Boa noite, Kalorama. Bem-vindos à Casa Guilhermina.”, exclamou perto do início do concerto, enquanto imagens da “sua casa” passavam no ecrã. Acompanhada por um grupo de instrumentos tradicionais portugueses e uma equipa de bailarinos, veio apresentar o projeto do mesmo nome, lançado em 2022. Numa combinação eclética de todas as suas influências, desconstruiu o fado e o kizomba em músicas como “Jacarandá” e “Calunga”, passando depois por êxitos passados mais conhecidos pelo público, como o “Desfado”. No final da atuação, a fadista deixou uma surpresa para quem se manteve firme no relvado da Bela Vista: uma canção nova, “Desliza”, para ser lançada em Setembro. O concerto terminou com um dueto sensual com Pedro Mafana em “Agarra em Mim”, com direito a um beijo final.

Quem tomou o palco principal ao cair da noite foi Raye, a artista inglesa de 26 anos que surpreendeu o mundo do pop no ano passado ao dominar as tabelas com o seu álbum de estreia “My 21st Century Blues” e singles “Prada” e “Escapism.” que se tornaram virais numa questão de semanas. Mas quem esperava uma dose de pop superficial e colorido ficou certamente surpreendido. Com um vestido de gala branco e um grupo extenso de instrumentistas, Raye definiu o tom do concerto logo no início com o poderoso “The Thrill Is Gone”. A postura e a voz a transbordar mel em letras de difícil digestão lembraram imediatamente a compatriota Amy Winehouse. Mas mal terminou a canção e se dirigiu à audiência, vimos uma faceta refrescante no mundo da música: uma vontade genuína de contactar com os seus ouvintes, de lhes mostrar quem é a pessoa por trás das músicas que escreve e canta. Pôs-se rapidamente à vontade em palco com um intimismo descontraído e informal que teve um efeito surpreendentemente forte num palco tão grande. O público acompanhou emocionalmente a cantora em músicas de tom mais sombrio como os blues de “Mary Jane” e “Ice Cream Man”, que disse ter-lhe salvado a vida num dos muitos devaneios que sublinharam as transições de canção para canção. O concerto terminou num tom mais leve com os seus êxitos pop “Escapism.” e uma versão rock de “Prada”. E, no final, a despedida foi com uma ovação entusiástica de um público apaixonado pelo que foi a sua primeira (de muitas, prevê-se) atuação em Lisboa.

A atuação que fechou o palco principal nesta 3ª edição do MEO Kalorama foi o artista nigeriano Burna Boy. Um dos porta-estandartes da música afrobeat e, de um modo, da música de origem africana em geral, regressou a Lisboa com um concerto que começou com um ritmo lento mas rapidamente deixou a plateia “em chamas”. Rodeado de mais de uma dezena de músicos e bailarinas em palco, fez o melhor que pôde para desinibir o público com os ritmos africanos a pontuar as suas rimas em músicas como “Big 7” e “It’s Plenty”. Já no final, em “Last Last”, um dos seus maiores sucessos, o artista nigeriano quis manter a energia no topo e até pediu à audiência para formar dois moshpits, mas os lisboetas não colaboraram muito.
Após o último (e emocionante) concerto de Yves Tumor no palco Lisboa, as portas do Parque da Bela Vista fecharam de vez para a edição deste ano do festival. No caminho para casa, ouviam-se já comentários, observações, tomadas de posição sobre o que foram estes três dias. Infelizmente, no que toca à organização, o sabor que o festival nos deixa na boca é muito azedo. E nem falo da cerveja abominável que escolheram como patrocínio, esse seria o menor dos problemas. Um recinto demasiado disperso, com quatro palcos diferentes a disputar concertos diferentes à mesma hora, sem indicações à vista, com muito pouca oferta de restauração e filas monstruosas para as casas de banho afetaram muito a experiência musical. Porque, na verdade, esse é o mínimo que os organizadores devem aos visitantes: afetar ao mínimo o aproveitamento dos concertos. Nesse ponto, deixaram muito a desejar. Outro problema (talvez o mais grave) foi a implementação defeituosa do sistema de pagamento cashless. O consumo de comida e bebida, especialmente em festivais, deve-se dar o mais fluidamente e rapidamente possível. Talvez tenha sido essa a ideia por trás do sistema, que exclui dinheiro físico e dispensa da colocação do código de segurança. No entanto, quando a maior parte das pessoas a atenderem o festival não consegue transferir dinheiro para a pulseira e quando a pulseira é o único modo de pagamento aceite, chega-se ao cúmulo do fracasso: um público que quer consumir, que quer contribuir para as receitas do festival, e vê-se impedido de o fazer. Como consequência, as bancas de cerveja e muitas de comida estavam surpreendentemente vazias, e notou-se um número decrescente de pessoas no recinto ao longo dos três dias. No entanto, e para terminar numa nota mais positiva, o festival conseguiu trazer artistas emergentes de estilos musicais radicalmente diferentes, e mostraram dar mais importância à música em si do que a nomes grandes que atraem pessoas só por serem (ou já terem sido) grandes. Com algumas melhorias na organização, será com certeza um dos festivais mais entusiasmantes que Portugal tem para oferecer.

João Carvalho
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